Como dançar a morte?


Como fazer o corpo mover-se, invocando o que em si marcou a perda, a dor, a saudade, o medo, o vazio, a raiva, a impotência, a angústia, o desespero, ou mesmo o alívio e a força que confluem, alternam-se, mesclam-se no enfrentamento do morrer?


Por Clarissa Dutra


As diversas formas de encarar a morte. Complexo, não? É baseado nesta temática, que o Espetáculo “Leve” estreou em Recife (julho/09), no Teatro Hermilo Borba Filho. Foi o primeiro trabalho de criação das artistas Maria Agrelli e Renata Muniz. Ambas atuam como bailarinas, coreógrafas e professoras de dança na cidade e, através de suas experiências artísticas e um cuidadoso trabalho de pesquisa, mergulharam no (pro)fundo universo da perda e, conseqüentemente, das reações fragmentadas desse sentimento.

Financiado pelo Fundo de Incentivo a Cultura de Pernambuco (Funcultura), o espetáculo transporta para a cena as sensações, os sentimentos e os questionamentos do ser humano diante da morte. As criadoras-bailarinas cuidaram de cada detalhe: cenário, iluminação, música e o trabalho coreográfico. Juntas (apesar da Renata ser uma “gigante”, em altura, na frente da Maria), são de um embalo extremamente harmônico. Elas tornam-se únicas. A dor de uma é sentida na outra. São corpos que se tocam, presentes e submersos em ausências compartilhadas.

A peça gira em torno de uma melancolia agoniante. Eu não sabia se fechava os olhos ou tapava os ouvidos. Se confessava (pra mim mesma) um espanto incalculável ou saberia dizer quantas luzinhas, quantos pingos de suor ou movimentos de braços e pernas continham ali, naquele espaço quase minúsculo de palco. Tudo era muito dúbio. O ar-condicionado ligado, mas um calor abafado na nuca e no corpo inteiro. Minha posição era estática, mas todo o meu corpo se balançava dizendo “sim” a cada gesto que faziam – como se entendessem, como se aqueles sussurros fossem ditos pra mim, pronunciando o que eu já sabia, sentindo a mesma coisa que eu sentia. A morte fica muito próxima da gente. Eu não conhecia aquelas bailarinas, mas sabia o que elas queriam dizer - o sentimento do humano em relação a perda.

Na minha experiência pessoal, felizmente, não existem grandes perdas. Mas a morte da minha avó, em 2004, me trouxe sensações extremas – nunca sentidas anteriormente. A sua lembrança me veio à tona, como uma maré. As lágrimas rolavam dos olhos, caindo salgadas na minha boca – que não pediam nada. Eu não pedia aquilo, não queria relembrar todos os instantes que não tinham explicação e nem o impacto dilacerante que a perda me causara, no entanto, fez o espetáculo ficar vivo em mim. Feito uma ausência que fica ali ou aqui, presente. Uma lembrança que sabe o porquê de existir: saudade, saudade.

São essas sensações de saudade, dor, raiva, impotência, confusão e alívio que se mesclam em cena. Utilizado o exercício do desapego e a recepção da morte, as bailarinas tentam traduzir na dança. Não utilizam apenas recursos cênicos, como estrutura física, iluminação ou figurino – que dialogam com o espetáculo e traz noções de leveza e fluidez temática, mas, essencialmente, é o corpo, por meio das metáforas dos movimentos, que há presença (ou ausência) da vida e de significados que revelam a ausência (ou presença) da morte.



Os poemas citados e a trilha sonora (criada pela Isaar), ainda hoje me acompanham. A junção da rabeca, violão e violoncelo é completamente bela. A música parece aqueles lamentos cantados nos velórios do Sertão nordestino. Ficam impregnados. Latejando alguma coisa que nunca se submerge.

Não dá pra definir uma única sensação. Eu poderia fechar os olhos e ainda sim, sentir as coreografias na minha cabeça, no corpo. Sabe quando você precisa fechar os olhos pra enxergar?

Saí do espetáculo pesando toneladas.



Serviço

Espetáculo de dança - "Leve" | Renata Muniz e Maria Agrelli

Processo de criação: http://levediario.blogspot.com

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