Por Andreane Carvalho
Os que apreciam literatura compreendem que há bons romances que são eternos, não se perdem com o passar dos anos. Há, também, aqueles que são como rios intermitentes. Em determinados períodos “desaparecem”, mas nem por isso deixam de ser boas histórias. Quando nos reencontramos com elas, as obras intermitentes demonstram a força e a beleza que os anos e a história lhes deram. Pessach: a Travessia, de Carlos Heitor Cony, é um desses. De tão intermitente, o autor chegou a considerar a não reedição da obra, temendo “que o livro estivesse datado”. De fato, não se pode esperar que um romance sobre a militância de um escritor burguês em um movimento contra a ditadura militar brasileira seja uma obra perene. No entanto, após 20 anos de abertura democrática Pessach é, sem dúvida, um livro que deve ser lido com atenção.
Trata-se da obra mais politizada/política do autor. Por trás da história de Paulo Simões, escritor burguês e apolítico que, ao completar 40 anos de vida, vê-se envolto em trama política/existencial até então inédita em sua biografia, a obra de Cony faz-nos refletir sobre o passado de um país em que esquerda e direita políticas confundem-se e posturas antes antagônicas misturam-se no emaranhado de falcatruas já assimiladas. O gramscianismo virulento da classe intelectual brasileira não afeta Paulo. Os dramas sociais dos oprimidos pelo sistema não fazem parte de sua literatura ou de sua atuação intelectual. Ele se entende como escritor que não se importa com esquerda, direita ou centro, mas apenas pretende uma boa vendagem de seus livros.
O protagonista reveste-se da resignação daqueles que já não sofrem de paixão ou amargura. Contenta-se em olhar no espelho diariamente e dar-se com um estranho. Há, no entanto, apenas um fato que ainda o perturba. A herança judaica, negada por seu pai, do qual herdara o sobrenome Simon que jamais assume, empurra Paulo Simões para a travessia. Não aquela a que os judeus foram liderados por Moisés rumo à terra prometida, mas uma travessia de si e para si. A circuncisão, marca corporal do judaísmo de Paulo, tem efeito freudiano em sua dúvida existencial. Age como pulsão de morte e vida, levando-o a questionar se o movimento no qual se viu envolvido à força, seqüestrado e privado de liberdade, não foi perseguido por ele, ao invés de persegui-lo. A travessia, portanto, é algo mais duro e difícil do que abrir as águas do Mar Vermelho. É um movimento que só se consegue após o questionamento da própria existência.
Se, por um lado, Pessach nos traz reflexões acerca de nós mesmos que, em tempos de “pós-modernices” destemperadas parecem perder a importância, por outro nos faz lembrar o quão obscuros foram os anos de chumbo da ditadura militar. Embora se trate de uma ficção, a obra serve para nos alertar de que não apenas os porões da ditadura eram lugares inóspitos em que ninguém gostaria de pisar, mas também os acampamentos dos diversos e discordantes movimentos de esquerda/revolucionários da época dispunham de seus aparatos de imposição de idéias, os quais não eram nada “ideológicos”.
Escrito ainda sob o manto censor do regime militar, Pessach: A Travessia é, sem dúvida, uma grande obra de um dos grandes autores da literatura brasileira contemporânea. E como tal, merece ser lido e relido, pois a cada página nos faz refletir sobre passado, presente e futuro. Sobre nós mesmos, e sobre a vida que nos circunda.
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