Já que sou, o jeito é ser.


Enquanto eu tiver perguntas e não houver resposta, continuarei a escrever.

(...) Pensar é um ato. Sentir é um fato.


Por Clarissa Dutra


A Hora da Estrela - 1976. Penúltimo romance e última obra publicada em vida pela Clarice Lispector, em 1977. Escrito após sua visita à Recife, alguns críticos afirmam que esta viagem “de volta ás origens” foi crucial à matéria prima para finalização da obra (em essência, por Clarice ter vivido a infância pobre no Nordeste), é escolhida, também, como seu livro mais autobiográfico – ou não (?). Percebe-se que o livro possui um discurso regionalista (algo incomum em suas obras anteriores), assim como desafia a realidade com sua extroversão. Pela primeira vez, Clarice se afasta da sua característica mais marcante: o intimismo. O romance foi adaptado para o cinema por Suzana Amaral em 1985 e a atriz Marcélia Cartaxo interpretou Macabéa – a personagem central da história.


Eu sou datilógrafa, sou virgem e gosto de coca-cola.


Clarice se utiliza de um falso autor, o narrador Rodrigo S.M, para relatar a história da datilógrafa alagoana de 19 anos, ignorante, órfã de pai, mãe e da tia que a criou. Macabéa, tentando escapar da miséria e do subdesenvolvimento, migra para o Rio de Janeiro e acaba indo morar numa pensão em que divide o quarto com quatro moças. Leva uma vida sem muitas emoções, pois é indiferente a elas. Sua única paixão em vida era “goiabada com queijo”, e ainda sim, era privada desse desejo. Uma personagem estereotipada: nordestina miserável, sem ânimo para vida, sem inserção no mundo, alienada. De uma precariedade tão absurda, que às vezes ia dormir com fome e o “remédio era mastigar o papel bem mastigadinho e dormir”.

Gostava de ouvir a Rádio Relógio porque os locutores falavam "palavras diferentes" embora ela desconhecesse os significados e não soubesse o que fazer com as informações. No desenrolar da trama, ela conhece Olímpico de Jesus – operário, e começam a namorar. Os dois apresentam ruídos no processo de comunicação: ela por não saber e não ter o que dizer e ele por se sentir superior, principalmente em relação ao aspecto lingüístico. Olímpico era ambicioso, capaz de qualquer ato para ascender socialmente. Até que ele conhece Glória – colega de trabalho de Macabéa, e sua relação não se sustenta, porque não vê nela chances de ascensão social (de qualquer tipo). Glória, no entanto, por pena, percebe a tristeza da colega e a aconselha buscar consolo numa cartomante.

Clarice Lispector insere na narrativa relações com a sua própria infância no nordeste, com a experiência que conseguiu capturar "o ar meio perdido" do nordestino na cidade do Rio de Janeiro, através de uma mulher na feira em São Cristovão e, outra inspiração foi uma visita que fez a uma cartomante. Na época, ela imaginou como "seria engraçado" se na saída, fosse atropelada por um taxi depois de ouvir todas as coisas boas que a cartomante tinha previsto.

Na obra, a Madame Carlota – indicada por Glória, prevê um futuro feliz pra Macabéa, que viria de um estrangeiro que ela conheceria assim que ela saísse da consulta, e esse “homem louro com quem casaria” – iria mudar repentinamente a sua vida. De certa forma, é o que acontece: ao sair da casa da cartomante, Macabéa é atropelada por um homem que dirigia um luxuoso Mercedes-Benz e acaba morrendo. Esta é a sua "hora da estrela", ela que queria “ser artista de cinema”, tem seu momento de libertação - para alguém que, afinal, "vivia numa cidade toda feita contra ela". Seu último suspiro é quase um afronte: “Quanto ao futuro”. Não há respostas – é a grandeza de cada um.


Descobrimos, agora, que tudo começa e acaba com um sim.
Também é preciso coragem para morrer,
silêncio para ouvir o grito da vida.


A Hora Estrela não é (tão) denso como as outras obras da Clarice, mesmo assim é difícil analisá-la. Há sempre algo nas entrelinhas, nos diálogos, seus personagens querem mostrar algo que parece ser simples, mas não é. Personagens e temáticas arremessadas em uma realidade próxima, alcançável aos olhos, mas é uma armadilha: Clarice sempre deixa um pouco das suas perguntas submersas, apesar de profundas. Mesmo parecendo tudo muito à mostra, ela desafia-nos a descobri-las, a buscá-las dentro da gente – que é sempre perturbador. Por isso que, muitas vezes, é considerada inacessível. Ela “cutuca” a ferida, mexe nos baús secretos da mente da gente, na nossa ideologia e nas razões da nossa existência. Ela não dá respostas, só pergunta “porquês”.

“Mas Clarice Lispector é tão chata!”. Foi com essa empolgação que (não) me aconselharam a falar da escritora e sua obra. Ok... É muita ousadia mesmo, “tentar”, falar algo sobre a Clarice. Deve ser por isso que passei uma semana inteirinha digitando e deletando, digitando e deletando, fingindo não ser comigo a “obrigação” de tentar descrever a sua obra-prima: Macabéa. Se a própria Clarice trouxe treze títulos diferentes à obra, quem sou eu para confrontar a intensidade lírica, as metáforas, as indagações filosóficas e o seu profundo mistério? Precisei me reencontrar com Macabéa e pedir licença pra ela ser um pouco minha.


A pessoa de quem vou falar é tão tola

que às vezes sorri para os outros na rua.


Macabéa é minha anti-heroína. Tão ingênua que chega a ser “incompetente para a vida”. De uma delicadeza e pureza que alguns a interpretam como cômica. A mim não. Em nenhum momento do livro e nem do filme (que trás mais deleites visuais) achei graça alguma. Pra mim, ela é sofrivelmente linda. Eu repito baixinho as suas falas – quase decoradas, e sempre, sempre choro. Ela tem “olhar de quem tem uma asa ferida”. Sabe como é?

Minha vontade é de pôr Macabéa no colo.

- Macabéa, você é feliz?

- E feliz serve pra quê?


Vontade de explicar pra ela o que é felicidade, porque ela “não sabia que ela era o que era, assim como um cachorro não sabe que é cachorro. Daí não se sentir infeliz. A única coisa que sabia era viver”. Pra mim, ela é inoxidável, frágil, pura, cativante. Um personagem que “grita” muita coisa, mesmo sendo de um alerta silencioso. Com ela sinto uma vontade de sacudir o corpo inteiro, pra reagir. Porque, como ela mesma diz: "a vida é um soco no estômago". E a gente precisa, todo dia, de alguma provação pra ser alguém no mundo.

Tinha prometido a mim mesma que demoraria a reler A hora da Estrela. Mas é, voltei! Macabéa voltou pra mim num suspiro... ou num susto. E eu sei que vou demorar pra largá-la, novamente. Não tem como sair ilesa. Com ela eu me pergunto: “quem sou eu”? Ela me provoca essa necessidade, mesmo me mostrando que “quem se indaga é incompleto”.

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É que só sei ser impossível, não sei mais nada.

Que é que eu faço para conseguir ser possível?


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